IV. JACINTA COM FAMA DE SANTIDADE
1. Indicação
Falta-me ainda responder a uma outra pergunta do Senhor Dr.
Galamba:
– Que sentiam as pessoas junto da Jacinta?
É difícil a resposta, porque, de ordinário, eu não sei o que se
passa no interior dos outros; e por isso não conheço os seus sentimentos.
Posso, pois, apenas dizer alguma coisa do que eu mesma
sentia e descrever alguma manifestação exterior do sentimento
das outras pessoas.
2. Jacinta, espelho de Deus
O que eu sentia era o que, de ordinário, se sente junto duma
pessoa santa que em tudo parece comunicar a Deus.
A Jacinta tinha um porte sempre sério, modesto e amável, que
parecia traduzir a presença de Deus em todos os seus actos, próprio
de pessoas já avançadas em idade e de grande virtude. Não
Ihe vi nunca aquela demasiada leviandade ou entusiasmo próprio
das crianças, pelos enfeites e brincadeiras. (Isto, depois das aparições, que, antes, era o número um de entusiasmo e capricho).
Não posso dizer que as outras crianças corressem para junto
dela, como o faziam para junto de mim. E isto, talvez, porque ela
não sabia tanta cantiga e historieta para Ihes ensinar e as entreter;
ou, então, porque a seriedade do seu porte era demasiado superior
à sua idade. Se, na sua presença, alguma criança ou mesmo
pessoas grandes diziam alguma coisa ou faziam qualquer acção
menos conveniente, repreendia-as, dizendo:
– Não façam isso, que ofendem a Deus Nosso Senhor; e Ele
já está tão ofendido!
Se a pessoa ou criança retorquia, chamando-lhe beata falsa
ou santinha de pau carunchento, ou coisa semelhante, o que acontecia várias vezes, ela olhava-as com uma certa severidade e, sem dizer palavra, afastava-se. Talvez fosse este um dos motivos pelo qual não gozava de mais simpatia. Se eu estava junto dela, depressa aí se juntavam dezenas de crianças; mas, se me ia embora,
depressa ficava só. No entanto, quando estavam junto dela,
parecia gostarem da sua companhia. Abraçavam-na com os abraços
próprios do carinho inocente; gostavam de cantar e jogar com
ela. Por vezes pediam-me para a ir buscar, quando não estava; e
se eu lhes dizia que ela não queria ir, por elas serem más, prometiam ser boas, se ela fosse.
– Vai buscá-la e diz-lhe que vamos a ser boas, se ela vier.
Na doença, quando, às vezes, a ia visitar, encontrava, fora da
porta, um bom grupo, esperando por mim para entrar a vê-la. Parecia que um certo respeito as detinha. Antes de me vir embora, às vezes, perguntava-lhe:
– Jacinta, queres que diga a algumas que fiquem aqui ao pé
de ti, a fazer-te companhia?
– Pois sim. Mas dessas mais pequeninas que eu.
Então, todas porfiavam, dizendo:
– Fico eu! Fico eu!
Depois, entretinha-se com elas, ensinando-lhes o Padre-Nosso,
a Ave-Maria, a benzer-se, a cantar e, sobre a cama dela ou sentadas
no chão, no meio da casa, se estava levantada, jogavam as
pedrinhas, servindo-se, para isso, das pequeninas maçãs, castanhas,
bolota doce, figos secos, etc., com que minha tia não lhes faltava, para que fizessem companhia a sua filhinha.
Rezava com elas o terço, aconselhava-as a não fazerem pecados,
para não ofenderem a Deus Nosso Senhor e não irem para
o inferno.
Algumas passavam aí manhãs e tardes quase inteiras, parecendo
sentirem-se felizes junto dela. Mas, depois de se terem ido
embora, não se atreviam a voltar com aquela confiança que parecia
ser natural entre crianças. Umas vezes, iam procurar-me e
pedir-me para entrar com elas; outras, esperavam-me junto da casa
ou, então, esperavam, fora da porta, que minha tia ou a própria
Jacinta as chamasse e convidasse a entrar e a ir para junto dela.
Parecia gostarem dela e da sua companhia, mas sentirem-se retidas
por um certo acanhamento ou respeito que as mantinha a uma
certa distância.
3. Jacinta, exemplo de virtudes
As pessoas grandes iam também visitá-la; mostravam admiração
pelo seu porte, sempre igual, paciente, sem a menor queixa
ou exigência. Na posição em que a mãe a deixava, assim permanecia.
Se Ihe perguntavam se estava melhor, respondia:
– Estou na mesma.
Ou,
– Parece que estou pior. Muito obrigada.
Com um ar mais bem triste, mantinha-se em silêncio diante de
quem a visitava. As pessoas sentavam-se aí junto dela, às vezes
longo tempo, parecendo sentirem-se aí felizes. Aí tinham também
lugar minuciosos e fatigantes interrogatórios, e ela sem mostrar
nunca a mínima impaciência ou aborrecimento. Apenas me dizia,
depois:
– Já me doía tanto a cabeça de ouvir aquela gente! Agora, que
não posso fugir para me esconder, ofereço mais sacrifícios destes
a Nosso Senhor.
As vizinhas, às vezes, iam coser a roupa para junto dela e
diziam:
– Vou trabalhar um pouco para o pé da Jacinta. Não sei o que
é que ela tem. A gente gosta de estar ao pé dela.
Levavam os filhinhos que com ela se entretinham a brincar e
as mães ficavam assim mais livres para coser. Às perguntas que
lhe faziam, respondia com palavras amáveis, mas breves. Se diziam
alguma coisa que não Ihe parecesse bem, acudia logo:
– Não digam isso, que ofendem a Deus Nosso Senhor.
Se contavam alguma coisa de suas famílias, que não fosse
boa, respondia-lhes:
– Não deixem os seus filhinhos fazer pecados, que Ihes podem
ir para o inferno.
Se eram pessoas maiores:
– Digam-lhes que não façam isso, que é pecado; que ofendem
a Deus Nosso Senhor e depois podem condenar-se.
As pessoas de longe, que por curiosidade ou devoção nos
visitavam, parecia sentirem algo de sobrenatural junto dela. Às
vezes, ao chegar a minha casa para falar comigo, diziam:
– Vimos de falar com a Jacinta e Francisco; junto deles, sente-se um não sei quê de sobrenatural.
Por vezes, queriam até que eu Ihes explicasse de que provinha
esse sentimento. Como não sabia, encolhia os ombros e
guardava silêncio. Não poucas vezes, ouvi comentar isto.
Um dia, chegaram a minha casa dois sacerdotes e um cavalheiro.
Enquanto minha mãe Ihes abriu a porta e os mandou sentar-se, subi para o sótão a esconder-me. Minha mãe, depois de os ter recebido, deixou-os sós, para me ir chamar ao pátio, onde acabava de me deixar. Não me encontrando, demorou-se à minha procura. Entretanto, os bons Senhores iam comentando o caso:
– Vamos a ver o que nos diz esta – dizia o cavalheiro. – A mim
impressionou-me a inocência e sinceridade da Jacinta e do
irmãozito. Se esta se não desdiz, eu acredito.
– Não sei que senti junto dos dois pequenos! Parece que se
sente ali algo de sobrenatural – acrescentou um dos Sacerdotes. –
A mim fez-me bem à alma falar com eles.
Minha mãe não me encontrou, e os bons Senhores tiveram
que resignar-se a partir sem me falar.
– Às vezes – dizia-lhes minha mãe –, vai-se por aí a brincar
com as outras crianças e não há quem na encontre.
– Temos muita pena! Gostámos muito de falar com os dois
pequenitos e queríamos também falar com a sua; mas voltaremos
noutra ocasião.
Um Domingo, minhas amigas da Moita, Maria, Rosa e Ana
Caetano, e Maria e Ana Brogueira, depois da Missa, foram pedir a
minha mãe para me deixar ir passar o dia com elas. Obtida a licença, pediram-me para levar comigo a Jacinta e Francisco. Obtida a licença de minha tia, lá fomos para a Moita. Depois do jantar, a Jacinta começou a deixar cair a cabecita com sono. O Senhor José Alves mandou uma das sobrinhas ir deitá-la na sua cama. Daí a pouco, dormia a sono solto. Começou a juntar-se a gente do lugarejo, para passar a tarde connosco; e, na ansiedade de a ver, foram espreitar, a ver se já estava acordada. Ficaram admiradas de vê-la dormir um pesadíssimo sono com um sorriso nos lábios, um ar angelical, as mãozinhas postas e levantadas para o Céu. O quarto encheu-se depressa de curiosos. Todos queriam vê-la, e a custo uns saíam para deixarem entrar os outros. A mulher do Senhor José Alves e as sobrinhas diziam:
– Isto deve ser um Anjo.
E tomadas dum certo respeito, permaneceram de joelhos junto
da cama, até que eu, perto das quatro e meia, a fui chamar, para
irmos rezar o terço à Cova de Iria e depois irmos para casa. As
sobrinhas do Senhor José Alves são as atrás apelidadas Caetano.
4. O Francisco era diferente
O Francisco era, também, neste ponto, um pouco diferente:
sempre a sorrir, sempre amável e condescendente, brincava com
todas as crianças indistintamente. Não repreendia a ninguém. Apenas, às vezes, se retirava, quando via alguma coisa que não estava bem. Se se Ihe perguntava por que se ia embora, respondia:
– Porque vocês não são bons.
ou
– Porque não quero brincar mais.
Na doença, as crianças entravam e saíam do seu quarto com
a maior liberdade, falavam-lhe da janela do quarto, perguntavam-lhe se estava melhor, etc. Se se Ihe perguntava se queria que algumas crianças ficassem junto dele a fazer-lhe companhia, respondia que não, que queria antes estar só.
– Só gosto – dizia às vezes – que estejas aqui tu e mais a
Jacinta.
Diante das pessoas grandes que o visitavam, mantinha-se em
silêncio e respondia, ao que Ihe perguntavam, em poucas palavras.
As pessoas que o visitavam, tanto da terra como de fora,
sentavam-se junto da cama dele, às vezes longo tempo, e diziam:
– Não sei que tem o Francisco! A gente sente-se aqui bem.
Algumas vizinhas comentavam, um dia, com minha tia e minha
mãe, depois de haverem estado um bom bocado de tempo no
quarto de Francisco:
– É um mistério que a gente não entende. São crianças como
as outras, não nos dizem nada, e junto delas sente-se um não sei
quê diferente das demais.
– Parece que se sente, ao entrar no quarto do Francisco, o
que sentimos ao entrar na Igreja – dizia uma mulher vizinha de
minha tia, de nome Romana, e que não mostrava acreditar nada
nos factos.
Nesse grupo estavam ainda mais três: uma era mulher de
Manuel Faustino, outra de José Marto, outra de José Silva.
Não me admira que as pessoas experimentassem estes sentimentos,
habituadas a encontrar, em todos, somente a materialidade
da vida caduca e perecedoura. Agora, a só vista destas
eleva-lhes o pensamento para a Mãe do Céu, com Quem se diz
que têm relações; para a eternidade, para onde os vêem tão prestes
a partir, tão alegres e felizes; para Deus, a Quem eles dizem
que amam mais que os próprios pais; e também para o inferno,
para onde eles lhes dizem que vão, se continuam a fazer pecados.
Materialmente são, como dizem, crianças como as outras. Mas se
essa boa gente, tão habituada só ao material da vida, soubesse
elevar um pouco o espírito, veria sem dificuldade, que nelas havia
algo que bastante as distinguia.
Veio-me agora à mente um outro facto que teve relação com o
Francisco e vou apontá-lo.
Entrou, um dia, no quarto de Francisco, uma mulher da Casa
Velha, chamada Mariana, que, aflita por o marido ter expulsado um
filho de casa, pedia a graça da reconciliação do filho com o pai. O
Francisco respondeu-lhe:
– Fique descansada. Vou em breve para o Céu e, quando lá
chegar, peço essa graça a Nossa Senhora.
Não me lembro bem os dias que tardou ainda a ir para o Céu;
mas o que recordo é que, na tarde do dia em que Francisco morreu,
o filho pediu pela segunda vez perdão ao pai que já Iho tinha
negado uma vez, por ele se não querer sujeitar às condições impostas. Sujeitou-se a tudo o que o pai lhe impunha e restabeleceu-se a paz naquela casa.
Uma irmã deste rapaz, de nome Leocádia, casou depois com
um irmão da Jacinta e Francisco e é agora a mãe daquela sobrinha
da Jacinta e Francisco que V. Ex.cia Rev.ma há tempo viu entrar,
na Cova de Iria, para religiosa Doroteia.