Jesus Crucified

Jesus Crucified
Jesus Christ have mercy on us

Holy Tridentine Mass - Santa Missa Tridentina.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

MEMÓRIAS DA IRMÃ LÚCIA -PRIMEIRA MEMÓRIA-I. RETRATO DE JACINTA

MEMÓRIAS DA IRMÃ LÚCIA -PRIMEIRA MEMÓRIA

I. RETRATO DE JACINTA
1. Temperamento
Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo
Antes dos factos de 1917, exceptuando o laço de parentesco
que nos unia, nenhum outro afecto particular me fazia preferir a
companhia da Jacinta e Francisco, à de qualquer outra criança. Lúcia, apesar da sua deficiente cultura escolar, tinha uma inclinação poética.
Escreveu várias poesias.
Pelo contrário, a sua companhia tornava-se-me, por vezes, bastante
antipática, pelo seu carácter demasiado melindroso. A menor
contenda, das que se levantam entre as crianças, quando jogam,
era bastante para a fazer ficar amuada, a um canto, a prender o
burrinho, como nós dizíamos. Para a fazer voltar a ocupar o seu
lugar na brincadeira, não bastavam as mais doces carícias que em
tais ocasiões as crianças sabem fazer. Era então preciso deixá-la
escolher o jogo e o par com quem queria jogar. Tinha, no entanto,
já então, um coração muito bem inclinado, e o bom Deus tinha-a
dotado dum carácter doce e meigo que a tornava, ao mesmo tempo,
amável e atraente.
Não sei porquê, a Jacinta, com seu irmãozinho Francisco, tinham por mim uma predilecção especial e buscavam-me, quasesempre, para brincar. Não gostavam da companhia das outras crianças e pediam-me para ir com eles para junto dum poço que tinham meus pais, no fundo do quintal. Uma vez aí, a Jacinta escolhia os jogos em que nos íamos entreter. Os seus preferidos eram, quase sempre, sentados sobre esse poço, que era coberto de lajes por cima, à sombra duma oliveira e duas ameixieiras, o jogo das pedrinhas ou do botão. Com este vi-me também, não poucas vezes, em grandes aflições, porque, quando nos chamavam para comer, encontrava-me sem botões na roupa. Por ordinário, ela tinha-mos ganhado e isto era o bastante para que minha mãe me ralhasse. Era preciso pregá-los à pressa; e como conseguir que ela mos desse, se, além do defeitilho de amuar, tinha o de agarrada? Queria guardá-los para o jogo seguinte, para não ter que arrancar os dela. Só ameaçando-a de que não voltava mais a brincar com ela é que os conseguia!
Não poucas vezes acontecia não poder satisfazer o desejo da
minha amiguinha. Como minhas irmãs mais velhas, que eram uma
tecedeira e a outra costureira, passavam os dias em casa, as
vizinhas pediam a minha mãe para deixarem os seus filhinhos no
pátio de meus pais, junto de mim, a brincar, sob a vigilância de
minhas irmãs, enquanto que elas iam para os campos trabalhar.
Minha mãe dizia sempre que sim, embora custasse a minhas irmãs
uma boa perca de tempo. Eu era então encarregada de entreter
essas crianças e ter cuidado que não caíssem num poço que havia
nesse pátio. Três grandes figueiras resguardavam, dos ardores do
sol, a essas crianças; seus ramos serviam de balouço e uma velha
eira servia de sala de jantar. Quando, nesses dias, a Jacinta vinha
com seu irmãozinho a chamar-me para o nosso retiro, dizia-lhe
que não podia ir, pois minha mãe me tinha mandado estar ali. Então
os dois pequeninos resignavam-se com desgosto e tomavam parte
na brincadeira. Nas horas da sesta, minha mãe dava a seus filhos
a sua lição de doutrina, principalmente quando se aproximava a
quaresma, porque – dizia – não quero ficar envergonhada, quando
o Senhor Prior vos perguntar a doutrina, na desobriga. Então todas
aquelas crianças assistiam à nossa lição de catecismo; a Jacinta
lá estava também.
2. Delicadeza de alma
Um dia, um desses pequenos acusou outro de ter dito algumas
palavras pouco decentes. Minha mãe repreendeu-o com toda
a severidade, dizendo que aquelas coisas feias não se diziam, que
era pecado e que o Menino Jesus se desgostava e mandava para
o inferno os que faziam pecados, se não se confessavam. A
pequenina não esqueceu a lição. No primeiro dia que encontrou a
dita reunião de crianças, disse:
Hoje tua mãe não te deixa ir?
– Não.
– Então eu vou para o meu pátio, com o Francisco.
– E por que não ficas aqui?
– Minha mãe não quer que, quando estiverem estes, aqui fiquemos.
Disse que fôssemos para o nosso pátio brincar. Não quer que aprenda essas coisas feias que são pecados e das que o Menino Jesus não gosta.

Depois, disse-me baixinho, ao ouvido:
– Se tua mãe te deixar, vens cá ter a minha casa?
– Sim.
– Então vai a pedir-lhe.

E tomando a mão do irmão, lá foi para sua casa.
Como já disse, um dos seus jogos escolhidos era o das prendas.
Como V. Ex.cia Rev.ma decerto sabe, quem ganha manda, ao
que perde, fazer uma coisa qualquer que Ihe parecer. Ela gostava
de mandar correr atrás das borboletas até apanhar uma e levar-
-lha. Outras vezes, mandava procurar uma flor qualquer que ela
escolhia. Um dia, jogávamos isto em casa de meus pais e tocou39
-me a mim mandá-la a ela. Meu irmão estava sentado a escrever
junto duma mesa. Mandei-a, então, dar-lhe um abraço e um beijo,
mas ela respondeu:
– Isso, não! Manda-me outra coisa. Por que não me mandas
beijar aquele Nosso Senhor que está ali?
(era um crucifixo que
havia pendurado na parede).
– Pois sim – respondi. – Sobes acima duma cadeira, trazê-lo
para aqui e, de joelhos, dás-lhe três abraços e três beijos: um pelo
Francisco, outro por mim e outro por ti.

– A Nosso Senhor dou todos quantos quiseres.
E correu a buscar o crucifixo. Beijou-o e abraçou-o com tanta
devoção, que nunca mais me esqueceu aquela acção. Depois, olha
com atenção para Nosso Senhor e pergunta:
Por que está Nosso Senhor assim pregado numa cruz?
– Porque morreu por nós.
– Conta-me como foi.

3. Amor a Cristo Crucificado
Minha mãe costumava, ao serão, contar contos. E entre os
contos de fadas encantadas, princesas douradas, pombinhas reais,
que nos contavam meu pai e minhas irmãs mais velhas, vinha minha mãe com a história da Paixão, de S. João Baptista, etc., etc.
Eu conhecia, pois, a Paixão de Nosso Senhor como uma história;
e como me bastava ouvir as histórias uma vez para as repetir
com todos os seus detalhes, comecei a contar aos meus
companheiros, pormenorizadamente, a história de Nosso Senhor,
como eu Ihe chamava. Quando minha irmã (
Maria dos Anjos, a irmã mais velha de Lúcia (†1986) ao passar por junto
de nós, se dá conta que tínhamos o crucifixo  nas mãos, tira-no-lo e repreende-me, dizendo que não quer que toque nos santinhos.
A Jacinta levanta-se, vai junto de minha irmã e diz-lhe:
– Maria, não ralhes! Fui eu, mas não torno mais.
Minha irmã fez-lhe uma carícia e disse-nos que fôssemos a
brincar lá para fora, dizendo que em casa não deixávamos parar
nada no seu lugar.
Lá fomos contar a nossa história para cima do poço de que já
falei e que, por estar escondido detrás duns castanheiros, dum
monte de pedras e dum silvado, havíamos de escolher, alguns anos
depois, para cela dos nossos colóquios, de fervorosas orações e,
também, Ex.mo Rev.mo Senhor, para dizer-vos tudo, também de lágrimas, por vezes bem amargas. Misturávamos as nossas lágrimas
às suas águas, para bebê-las depois, na mesma fonte onde as
derramávamos. Não seria essa cisterna a imagem de Maria, em
cujo Coração enxugávamos o nosso pranto e bebíamos a mais
pura consolação?
Mas voltando à nossa história:
Ao ouvir contar os sofrimentos de Nosso Senhor, a pequenina
enterneceu-se e chorou. Muitas vezes, depois, pedia para Iha
repetir. Chorava com pena e dizia:
– Coitadinho de Nosso Senhor! Eu não hei-de fazer nunca
nenhum pecado. Não quero que Nosso Senhor sofra mais.

4. Sensibilidade
A pequenita gostava também muito de ir, à noitinha, para uma
eira que tínhamos em frente da casa, ver o lindo pôr do sol e o céu
estrelado que se Ihe seguia. Entusiasmava-se com as lindas noites
de luar. Porfiávamos a ver quem era capaz de contar as estrelas
que dizíamos serem as candeias dos Anjos. A lua era a de Nossa
Senhora e o sol a de Nosso Senhor, pelo que a Jacinta dizia, às
vezes:
Ainda gosto mais da candeia de Nossa Senhora, que não
nos queima nem cega; e a de Nosso Senhor, sim.

Na verdade, o sol, em alguns dias de verão, faz-se sentir bem
ardente; e a pequenina, como era de compleição muito fraca, sofria
muito com o calor.
5. Catequese infantil
Como minha irmã era zeladora do Coração de Jesus, sempre
que havia comunhão solene de crianças, levava-me a renovar a
minha. Minha tia levou, uma vez, a sua filhinha a ver a festa. A
pequenita fixou-se nos anjos que deitavam flores. Desde esse dia,
de vez em quando afastava-se de nós, quando jogávamos; colhia
uma arregaçada de flores e vinha atirar-me com elas.
– Jacinta, para que fazes isso?
– Faço como os anjinhos, deito-te flores.

Minha irmã costumava, ainda, em uma festa anual que devia
ser, talvez, a de Corpus (Christi), vestir alguns anjinhos, para irem
ao lado do pálio, na procissão, a deitar flores. Como eu era sempre
uma das designadas, uma vez, quando minha irmã me provou o
vestido, contei à Jacinta a festa que se aproximava e como eu ia a
deitar flores a Jesus. A pequenita pediu-me, então, para eu pedir a
minha irmã para a deixar ir também. Fomos as duas fazer o pedido;
minha irmã disse-nos que sim. Provou-lhe também um vestido e,
nos ensaios, disse-nos como devíamos deitar as flores ao Menino
Jesus. A Jacinta perguntou:
– E nós vêmo-Lo?
– Sim – respondeu minha irmã –, leva-O o Senhor Prior.
A Jacinta saltava de contente e perguntava continuamente se
ainda faltava muito para a festa. Chegou, por fim, o desejado dia e
a pequenita estava doida de contente. Lá nos colocaram as duas
ao lado do altar; e, na procissão, ao lado do pálio, cada uma com o
seu açafate de flores. Nos sítios marcados por minha irmã, atirava
a Jesus as minhas flores. Mas, por mais sinais que fiz à Jacinta,
não consegui que espalhasse nem uma. Olhava continuamente
para o Senhor Prior e nada mais. Quando terminou a função, minha
irmã trouxe-nos para fora da Igreja e perguntou:
– Jacinta, por que não deitaste as flores a Jesus?
– Porque não O vi.

Depois, perguntou-me:
– Então tu viste o Menino Jesus?
– Não! Mas tu não sabes que o Menino Jesus da hóstia, que
não se vê, está escondido?! É O que nós recebemos na comunhão.
– E tu, quando comungas, falas com Ele?
– Falo.
– E por que não O vês?

Porque está escondido.
– Vou pedir a minha mãe que me deixe ir também a comungar.
– O Senhor Prior não ta dá sem teres 10 anos.
– Mas tu ainda os não tens e já comungaste!
– Porque sabia a doutrina toda e tu não a sabes.

Pediram-me, então, para os ensinar. Constituí-me, então,
catequista dos meus dois companheiros que aprendiam com um
entusiasmo único. Mas eu que, quando me interrogavam, respondia
a tudo, agora, para ensinar, poucas coisas me lembravam, o
que fez com que a Jacinta me dissesse, um dia:
– Ensina-nos mais coisas, que essas já as sabemos.
Confessei que não me lembravam sem mas perguntarem, e
acrescentei:
– Pede a tua mãe que te deixe ir à Igreja aprender.
Os dois pequenitos, que desejavam ardentemente receber a
Jesus escondido, como eles diziam, foram fazer o pedido à mãe.
Minha tia disse que sim, mas poucas vezes os deixava ir, por que,
dizia ela, a Igreja é bastante longe, vocês são muito pequeninos e,
de todos (os) modos, o Senhor Prior não vos dá a comunhão antes
dos 10 anos (
Jacinta nasceu em 11 de Março de 1910).
A Jacinta fazia-me continuamente perguntas a respeito de
Jesus escondido e lembro-me que, um dia, perguntou-me:
– Como é que tanta gente recebe ao mesmo tempo o Menino
Jesus escondido? É um bocadito para cada um?
Não. Não vês que são muitas hóstias e que em cada uma
está um Menino?!

Quantos disparates Ihe terei dito!
6. Jacinta, a pequena Pastora
Entretanto, Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo, cheguei à idade em
que minha mãe mandava os seus filhos guardar o rebanho. Minha
irmã Carolina fez os seus 13 anos (
Carolina faleceu em 31 de Março de 1992) e era preciso começar a trabalhar. Minha mãe entregou-me, por isso, o cuidado do nossorebanho. Dei a notícia aos meus companheiros e disse-Ihes que não voltava mais a brincar com eles; mas os pequenitos não seconformavam com a separação. Foram pedir à mãe que os deixasse ir comigo, o que Ihes foi negado. Tivemos que nos conformar com a separação. Vinham, então, quase todos os dias, à noitinha, esperar-me ao caminho e lá íamos, então, para a eira, dar algumas corridas, à espera que Nossa Senhora e os Anjos acendessem as suas candeias e as viessem pôr à janela para nos alumiar, como nós dizíamos. Quando não havia luar, dizíamos que a candeia de Nossa Senhora não tinha azeite.
Aos dois pequenitos custava a conformar com a ausência da
sua antiga companheira. Por isso, renovavam continuamente as
instâncias junto de sua mãe, para que os deixasse, também eles,
guardar o seu rebanho. Minha tia, talvez para se ver livre de tantos
pedidos, apesar de serem demasiado pequenos, entregou-lhes a
guarda das suas ovelhinhas. Radiantes de alegria, foram dar-me a
notícia e combinar como juntaríamos todos os dias os nossos rebanhos.
Cada um abriria o seu à hora que Ihe mandasse sua mãe
e o primeiro esperava pelo outro, no Barreiro (assim chamávamos
a uma pequena lagoa que estava ao fundo da serra). Uma vez
juntos, combinávamos qual a pastagem do dia e para lá íamos, tão
felizes e contentes, como se fôssemos para uma festa!
Aqui temos, Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo, a Jacinta na sua
nova vida de pastorinha. As ovelhinhas ganhámo-las à força de
distribuir por elas as nossas merendas. Por isso, quando chegávamos à pastagem, podíamos brincar descansados, que elas não se afastavam de nós. A Jacinta gostava muito de ouvir o eco da
voz no fundo dos vales. Por isso, um dos nossos entretenimentos
era, no cimo dos montes, sentados no penedo maior, pronunciar
nomes em alta voz. O nome que melhor ecoava era o de Maria. A
Jacinta dizia, às vezes, assim, a Ave Maria inteira, repetindo a palavra seguinte só quando a precedente tinha acabado de ecoar.
Gostávamos também de entoar cânticos. Entre vários profanos,
que infelizmente sabíamos bastantes, a Jacinta preferia o Salve
Nobre Padroeira, Virgem Pura, Anjos, cantai comigo. Éramos, no
entanto, bastante afeiçoados ao baile e qualquer instrumento que
ouvíssemos tocar aos outros pastores era o bastante para nos pôr
a dançar. A Jacinta, apesar de ser tão pequena, tinha, para isso,
uma arte especial.
Tinham-nos recomendado que, depois da merenda, rezássemos
o Terço; mas, como todo o tempo nos parecia pouco, para
brincar, arranjámos uma boa maneira de acabar breve: passávamos
as contas, dizendo somente: Ave Maria, Ave Maria, Ave Maria!
Quando chegávamos ao fim do mistério, dizíamos, com muita
pausa, a simples palavra: Padre Nosso! E assim, em um abrir e fechar de olhos, como se costuma dizer, tínhamos o nosso Terço
rezado!
A Jacinta gostava também muito de agarrar os cordeirinhos
brancos, sentar-se com eles no colo, abraçá-los, beijá-los e, à noite,
trazê-los ao colo para casa, para que não se cansassem. Um
dia, ao voltar para casa, meteu-se no meio do rebanho.
– Jacinta – perguntei-lhe – para que vais aí, no meio das ovelhas?
– Para fazer como Nosso Senhor, que, naquele santinho que
me deram, também está assim, no meio de muitas e com uma ao
colo.