§ III. DA MODÉSTIA DOS OLHOS
Quase
todas as paixões que se revoltam contra nosso espírito têm sua origem na
liberdade desenfreada dos olhos, pois os olhares livres são os que despertam em
nós, de ordinário, as inclinações desregradas. "Fiz um contrato com meus
olhos de não cogitar sequer em uma virgem", diz Jó (Job 31, 1). Mas, por
que diz ele de não pensar sequer em uma virgem? Não parece que deveria dizer:
Fiz um contrato com meus olhos de não olhar sequer? Não, ele tem toda a razão
de falar assim, porque o pensamento está intimamente ligado ao olhar, não se
podendo separar um do outro, e, para não ter maus pensamentos, propôs-se esse
santo homem nunca olhar para uma virgem.
Santo
Agostinho diz: "Do olhar nasce o pensamento, e do pensamento a
concupiscência". Se Eva não tivesse olhado para o fruto proibido, não
teria pecado; ela, porém, achou gosto em contemplá-lo, parecendo-lhe bom e
belo; apanhou-o então, e fez-se culpada da desobediência.
Aqui
vemos como o demônio nos tenta primeiramente a olhar, depois a desejar e,
finalmente, a consentir. Por isso nos assegura São Jerônimo que o demônio só
necessita de nosso começo: dá-se por satisfeito se lhe abrimos a metade da
porta, pois ele saberá conquistar a outra metade. Um olhar voluntário, lançado
a uma pessoa do outro sexo, acende uma faísca infernal que precipita a alma na
perdição. "As primeiras setas que ferem as almas castas, diz São Bernardo
(De mod. ben. viv., serm. 23), e não raro as matam, entram pelos olhos".
Por causa dos olhos caiu Davi, esse homem segundo o coração de Deus. Por causa
dos olhos caiu Salomão, esse instrumento do Espírito Santo. Por causa dos
olhos, quantas almas não se perderam eternamente?
Vigie,
pois, cada um sobre seus olhos, se não quiser chorar uma vez com Jeremias:
"Meus olhos me roubaram a vida" (Jer 3, 51); as afeições criminosas
que penetraram em meu coração por causa dos meus olhares, lhe deram a morte.
São Gregório diz (Mor. 1, 21, c. 2): "Se não reprimires os olhos,
tornar-se-ão ganchos do inferno, que a força nos arrastarão e nos obrigarão,
por assim dizer, a pecar contra a nossa vontade". "Quem contempla
objeto perigoso, acrescenta o Santo, começa a querer o que antes não
queria". É também o que diz a Sagrada Escritura (Jdt 16, 11), quando diz
que a bela Judite escravizou a alma de Holofernes, apenas este a contemplou.
Sêneca
diz que a cegueira é mui útil para a conservação da inocência. Seguindo esta
máxima, um filósofo pagão arrancou-se os olhos para quardar a castidade, como
nos refere Tertuliano. Isso, porém, não é lícito a nós, cristãos; se queremos
conservar a castidade, devemos, contudo, fazer-nos cegos por virtude,
abstendo-nos de olhar o que possa despertar em nós os maus pensamentos.
"Não contemples a beleza alheia; disso origina-se a concupiscência, que
queima como o fogo" (Ecli 9, 8). À vista seguem-se as imaginações
pecaminosas, que acendem o fogo impuro.
São
Francisco de Sales dizia: "Quem não quiser que o inimigo penetre na
fortaleza, deve conservar as portas fechadas". Por essa razão foram os
Santos tão cautelosos em seus olhares. Por temor de enxergarem inesperadamente
qualquer objeto perigoso, conservavam os olhos quase sempre baixos, e se
abstinham de olhar coisas inteiramente inocentes. São Bernardo, depois de um
ano inteiro no noviciado, não sabia ainda se o teto de sua cela era plano ou
abobadado. Na igreja do convento havia três janelas e ele não o sabia, porque
conservara os olhos baixos. Evitavam os Santos, com cautela maior ainda, pôr os
olhos em pessoa de outro sexo. São Hugo, bispo, nunca olhava para o rosto das
mulheres com quem tinha de conversar. Santa Clara nunca olhava para a face de
um homem. Aconteceu uma vez que, levantando os olhos para a Hóstia Sagrada,
durante a Elevação, viu o rosto do sacerdote, com o que ficou profundamente
aflita.
Julgue-se
agora quão grande é a imprudência e temeridade dos que, não possuindo a virtude
dum desses Santos, ousam passear suas vistas em todas as pessoas, não
exceptuando as de outro sexo, e querendo ainda ficar livre de tentações e do
perigo de pecar. São Gregório diz (Dial. 1.2, c. 2) que as tentações que
levaram São Bento a revolver-se sobre espinhos, provieram de um olhar
imprudente sobre uma senhora. São Jerônimo, achando-se na gruta de Belém, onde
continuamente orava e macerava seu corpo com as mais atrozes penitências, foi
por longo tempo atormentado pela lembrança das damas que vira tempos antes em
Roma. Como, pois, poderemos ficar preservados de tentações, quando nos expomos
ao perigo, olhando e até fitando complacentemente pessoas de outro sexo?
O que
nos prejudica não é tanto o olhar casual como o premeditado, o mirar. Razão
porque Santo Agostinho diz (Reg. ad Serv. Dei, n. 6): "Se vossos olhos
casualmente caírem sobre uma pessoa, cuja vista vos pode ser prejudicial,
guardai-vos, ao menos, de fitá-la". E São Gregório diz: "Não é lícito
contemplar ou extasiar-se com a vista daquilo que não é lícito desejar, pois,
ainda que expulsemos os maus pensamentos que costumam seguir o olhar
voluntário, deixam sempre uma mancha na alma". Tendo-se perguntado ao
irmão Rogério, franciscano, dotado de uma pureza angélica, por que se mostrava
tão reservado em seus olhares, quando trata va com mulheres, respondeu:
"Se o homem foge à ocasião, Deus o protege; se se expõe a ela, Nosso
Senhor o abandona e facilmente cairá no pecado".
Suposto
mesmo que a liberdade que se concede aos olhos não produzisse outros males,
impediria sempre o recolhimento da alma durante a oração; pois tudo o que vimos
e nos impressionou, apresenta-se aos olhos de nossa alma e nos causa uma
imensidade de distrações. Quem já tem recolhimento de espírito durante a
oração, tome muito cuidado para não se ver privado dessa graça dando liberdade
a seus olhos.
Está
fora de dúvida que um cristão que vive sem recolhimento de espírito não pode
praticar as virtudes cristãs da humildade, da paciência, da mortificação, como
deveria. Guardemo-nos, por isso, de olhares curiosos, e só olhemos para objetos
que elevam para Deus o nosso espírito. "Olhos baixos elevam o coração para
o Céu", dizia São Bernardo. São Gregório Nazianzeno (Ep. ad Diocl.)
escreve: "Onde habita Cristo com Seu amor, reina aí a modéstia". Com
isso não quero, porém, dizer que nunca se deva levantar os olhos ou considerar
coisa alguma; pelo contrário, é até bom, às vezes, olhar coisas que elevam
nosso coração para Deus, como santas imagens, prados floridos, etc, já que a
beleza dessa criatura nos atrai à contemplação do Criador.
Deve-se
notar também que a modéstia dos olhos é necessária não só para nosso próprio
bem, como para a edificação do próximo. Só Deus vê o nosso coração; os homens
vêem apenas nossas obras externas e, ou se edificam, ou se escandalizam com
elas. "Pelo rosto se conhece o homem", diz a Escritura (Ecli 19, 26),
isto é, pelo exterior se depreende o que é o homem interiormente. Todo cristão,
por isso, deve ser o que era São João Batista, conforme as palavras do Salvador
(Jo 5, 35): "Uma lâmpada que arde e ilumina".
Interiormente
deve arder em amor divino; exteriormente, alumiar, pela modéstia, a todos os
que o vêem. Também a nós se podem aplicar as palavras que São Paulo dirigiu a
seus discípulos (I Cor 4, 9): "Somos o espetáculo dos anjos e dos
homens". "A vossa modéstia seja conhecida de todos os homens"
(Filip 4, 5)..
Pessoas
devotas são observadas pelos anjos e pelos homens, e, por isso, sua modéstia
deve ser notória a todos, do contrário, deverão dar rigorosas contas a Deus no
dia do Juízo. Observando a modéstia, edificamos sumamente os outros e os
estimulamos à prática da virtude.
É
celebre o que se conta de São Francisco de Assis: Uma vez deixou ele o convento
junto a uma companheiro, dizendo que ia pregar; tendo dado uma volta pela
cidade com os olhos baixos, entrou novamente no convento. 'Mas quando farás o
sermão?', perguntou-lhe o companheiro. 'Já o fiz, respondeu-lhe o Santo,
consistiu todo no resguardo dos olhos, do que demos exemplo ao povo'.
Santo
Ambrósio diz que a modéstia das pessoas virtuosas é uma exortação mui poderosa
ao coração dos mundanos. "Quão belo não seria se bastasse te apresentares
em público para fazeres bem aos outros!" (In ps. 118, s. 10). De São
Bernardino de Sena se conta que, mesmo antes de entrar para o convento, bastava
só a sua presença para pôr fim às conversas livres de seus companheiros; mal o
avistavam, diziam uns para os outros: Silêncio, Bernardino vem vindo; e então
calavam-se ou começavam a falar de outras coisas. Santo Efrém, segundo o
testemunho de São Gregório de Nissa, era tão modesto, que já a sua vista
estimulava à devoção, e não se podia vê-lo sem se sentir levado a se tornar
melhor. Mais admirável ainda é o que nos refere Suvio, do santo sacerdote e
mártir Luciano: só por sua modéstia moveu muitos pagãos a abraçarem a santa Fé.
O imperador Mazimiano, que fora disso informado, temendo sentir a sua
influência e ser obrigado a converter-se, citou-o à sua presença, mas não quis
vê-lo, e sujeitou-o ao interrogatório ocultando-o a suas vistas por uma cortina
estendida entre os dois.
Nosso
ideal mais perfeito de modéstia foi, porém, o nosso Divino Salvador mesmo,
pois, como nota um célebre autor, os Evangelistas dizem, várias vezes, que o
Redentor levantou os olhos em certas ocasiões, dando a entender, com isso, que
tinha ordinariamente os olhos baixos. Por isso exalta o Apóstolo a modéstia de
seu Divino Mestre, escrevendo a seus discípulos: "Rogo-vos pela mansidão e
modéstia de Cristo" (II Cor 10, 1).
Concluo
com as palavras de São Basílio a seus monges: "Se quisermos que nossa alma
tenha suas vistas sempre postas no Céu, filhos queridos, conservemos nossos
olhos sempre voltados para a terra". De manhã, ao despertar, devemos já
pedir, com o Profeta: "Afastai meus olhos, Senhor, para que não vejam a
vaidade" (Sl 118, 37).