São Leão Magno
Sermão «Natal do Senhor»
á muitas vezes, caríssimos, ouvistes falar e fostes instruídos a respeito
do mistério da solenidade de hoje; porém, assim como a luz visível enche
sempre de prazer os olhos sadios, também aos corações retos não cessa de
causar regozijo a natividade do Senhor.
Jamais devemos deixá-la transcorrer em silêncio, embora não possamos
condignamente explaná-la, pois aquela palavra: "a sua geração, quem a poderá
explicar?" se refere certamente não só ao mistério pelo qual o
Filho de Deus é co-eterno com o Pai, mas ainda a este nascimento em que "o
Verbo se fez carne".
O Filho de Deus, que é Deus como seu Pai, que recebe do Pai sua mesma
natureza, Criador e Senhor de tudo, que está presente em toda parte e
transcende o universo inteiro, na seqüência dos tempos que, de sua
providência dependem, escolheu para si este dia, a fim de, em prol da
salvação do mundo, nele nascer da bem-aventurada Virgem Maria, conservando
intacto o pudor de sua mãe. A virgindade de Maria não foi violada no parto,
como não fora maculada na conceição, "a fim de que se cumprisse - diz o
evangelista - o que foi pronunciado pelo Senhor, através do profeta Isaías:
Eis que uma virgem conceberá no seu seio e dará à luz um filho, ao qual
chamarão Emanuel, que quer dizer Deus conosco".
O admirável parto da sagrada Virgem trouxe à luz uma pessoa que, em sua
unicidade, era verdadeiramente humana e verdadeiramente divina, já que as
duas naturezas não conservaram suas propriedades de modo tal que se pudessem
distinguir como duas pessoas: não foi apenas ao modo de um Habitador em seu
habitáculo que o Criador assumiu a sua criatura, mas, ao contrário, uma
natureza como que se adicionou à outra. Embora duas naturezas, uma a
assumente e outra assumida, é tal a unidade que formam, que um único e mesmo
Filho poderá dizer-se, enquanto verdadeiro homem, menor que o Pai e enquanto verdadeiro Deus, igual ao Pai.
Uma unidade dessas, caríssimos, entre Criador e criatura, o olhar cego dos
arianos não pôde entender, os quais, não crendo que o Unigênito de Deus
possua a mesma glória e substância do Pai, afirmaram ser menor a divindade
do Filho, argumentando com as palavras (evangélicas) que dizem respeito à
forma de servo .
Ora, o próprio Filho de Deus, para mostrar como essa condição de servo nele
existente não pertence a uma pessoa estranha e distinta, com ela mesma nos
diz: "eu e o Pai somos uma só coisa".
Na natureza de servo, portanto, que ele, na plenitude dos tempos, assumiu em
vista da nossa redenção, é menor do que o Pai; mas na natureza de Deus, na
qual existia desde antes dos tempos, é igual ao Pai. Em sua humildade
humana, foi feito da mulher, foi feito sob a Lei, continuando a
ser Deus, em sua majestade divina, o Verbo divino, por quem foram feitas
todas as coisas. Portanto, aquele que, em sua natureza de Deus,
fez o homem, revestiu uma forma de servo, fazendo-se homem; é o mesmo o que
é Deus na majestade desse revestir-se e homem na humildade da forma
revestida. Cada uma das naturezas conserva integralmente suas propriedades:
nem a de Deus modifica a de servo, nem a de servo diminui a de Deus. O
mistério, pois, da força unida à fraqueza, permite que o Filho, em sua
natureza humana, se diga menor do que o Pai, embora em sua natureza divina
lhe seja igual, pois a divindade da Trindade do Pai, do Filho e do Espírito
Santo é uma só. Na Trindade o eterno nada tem de temporal, nem existe
dissemelhança na divina natureza: lá a vontade não difere, a substância é a
mesma, a potência igual, e não são três Deuses, unidade verdadeira e
indissociável é essa, onde não pode existir diversidade.
Nasceu pois numa natureza perfeita e verdadeira de homem o verdadeiro Deus,
todo no que é seu e todo no que é nosso. "Nosso" aqui dizemos que o Criador
criou em nós no início, e depois assumiu para restaurar. O que, porém, o
sedutor (o demônio) introduziu e o homem, ludibriado, aceitou, isso não teve
nem vestígio no Salvador, pois comungando com nossas fraquezas não
participou dos nossos delitos. Elevou o humano sem diminuir o divino, dado
que a exinanição em que o Invisível se nos mostrou visível foi descida de
compaixão, não deficiência de poder.
Assim, para sermos novamente chamados dos grilhões originais e dos erros
mundanos à eterna bem-aventurança, aquele mesmo a quem não podíamos subir
desceu até nós. Se, realmente, muitos eram os que amavam a verdade, a
astúcia do demônio iludia-os na incerteza de suas opiniões, e sua
ignorância, ornada com o falso nome de ciência, arrastava-os a sentenças as
mais diversas e opostas. A doutrina da antiga Lei não era bastante para
afastar essa ilusão que mantinha as inteligências no cativeiro do soberbo
demônio. Nem tampouco as exortações dos profetas lograriam realizar a
restauração de nossa natureza. Era necessário que se acrescentasse às
instituições morais uma verdadeira redenção, necessário que uma natureza
corrompida desde os primórdios renascesse em novo início. Devia ser
oferecida pelos pecadores uma hóstia ao mesmo tempo participante de nossa
estirpe e isenta de nossas máculas, a fim de que o plano divino de remir o
pecado do mundo por meio da natividade e da paixão de Jesus Cristo atingisse
as gerações de todos os tempos e, longe de nos perturbar, antes nos
confortasse a variação dos mistérios no decurso dos tempos, desde que a fé,
na qual hoje vivemos, não variou nas diversas épocas.
Cessem, por isso, as queixas dos que impiamente murmuram contra a divina
providência e censuram o retardo da natividade do Senhor, como se não
tivesse sido concedido aos tempos antigos o que se realizou na última idade
do mundo. A Encarnação do Verbo podia conceder, já antes de se realizar, os
mesmos benefícios que outorga aos homens, depois de realizada; o ministério
da salvação humana nunca deixou de se operar. O que os apóstolos pregaram,
os profetas prenunciaram; não foi cumprido tardiamente aquilo a que sempre
se prestou fé. A sabedoria, porém, e a benignidade de Deus, cem essa demora
da obra salutífera, nos fez mais capazes de nossa vocação, pois o que fora
prenunciado por tantos sinais, tantas vezes e tantos mistérios, poderíamos
reconhecer sem ambigüidade nestes dias do Evangelho. A natividade, mais
sublime do que todos os milagres e do que todo o entendimento, geraria em
nós uma fé tanto mais firme quanto mais antiga e amiudada tivesse sido antes
sua pregação. Não foi, pois, por deliberação nova ou por comiseração tardia
que Deus remediou a situação do homem, mas, desde a Criação do mundo
instituíra uma e mesma causa de salvação, para todos. A graça de Deus, que
justifica os santos, foi aumentada com o nascimento de Cristo, não foi
simplesmente principiada. E esse mistério da compaixão, esse mistério que
hoje já enche o mundo, fora tão potente em seus sinais prefigurativos que
todos os que nele creram, quando prometido, não conseguiram menos do que os
que o conheceram realizado.
São assim, caríssimos, tão grandes os testemunhos da bondade divina para
conosco que, para nos chamar à vida eterna, não apenas nos ministrou as
figuras, como aos antigos, mas a própria Verdade nos apareceu, visível e
corpórea. Não seja, portanto, com alegria profana ou carnal que celebremos o
dia da natividade do Senhor. celebra-lo-emos dignamente se nos lembrarmos,
cada um de nós, de que Corpo somos membros e a que Cabeça estamos unidos,
cuidando que não se venha a inserir no sagrado edifício uma peça
discordante.
Considerai atentamente, caríssimos, sob a luz do Espírito Santo, quem nos
recebeu consigo e quem recebemos conosco: sim, como o Senhor se tornou carne
nossa, nascendo, também nós nos tornamos seu Corpo, renascendo. Somos
membros de Cristo e templos do Espírito Santo e por isto o Apóstolo diz:
"Glorificai e trazei a Deus no vosso corpo" . Apresentando-nos
o exemplo de sua humildade e mansidão, o Senhor comunica-nos aquela mesma
força com que nos remiu, conforme prometeu: "Vinde a mim, vós todos, que
trabalhais e estais sobrecarregados, e eu vos reconfortarei. Tomai o meu
jugo sobre vós e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração, e
encontrareis repouso para vossas almas" .
Tomemos, portanto, o jugo, em nada pesado e em nada áspero, da Verdade que
nos guia e imitemos na humildade aquele a cuja glória queremos ser
configurados. Que nos auxilie e nos conduza às suas promessas quem em sua
grande misericórdia é poderoso para apagar nossos pecados e completar seus
dons em nós, Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina pelos séculos dos
séculos. Assim seja.
Fonte:
GOMES, Cirilo
Folch, OSB. Antologia dos Santos Padres. Coleção "Patrologia". Ed. Paulinas,
São Paulo, 1985.