A verdadeira obediência
A
indisciplina está por toda a parte na Igreja, comissões de padres
enviam intimações a seus bispos, os bispos desprezam exortações
pontifícias, as próprias recomendações e decisões conciliares não são
respeitadas e apesar disto não se ouve jamais pronunciar a palavra
desobediência salvo para aplicá-la aos católicos que querem continuar
fiéis à tradição e simplesmente conservar a fé.
A
obediência constitui um assunto grave, ficar unido ao magistério da
Igreja e particularmente ao Pontífice Supremo é uma das condições da
salvação. Nós temos profunda consciência disto e também ninguém mais do
que nós é apegado ao sucessor de Pedro atualmente reinante, como nós o
fomos a seus predecessores, e eu falo aqui de mim e dos numerosos fiéis
rejeitados das igrejas, dos sacerdotes obrigados a celebrar a missa em
granjas como durante a Revolução Francesa, e a organizar catecismos
paralelos nas cidades e nos campos.
Somos
apegados ao papa enquanto ele se faz o eco das tradições apostólicas e
dos ensinamentos de todos os seus predecessores. É a definição mesma do
sucessor de Pedro guardar este depósito! Pio IX nos ensina na Pastor aeternus:
“O Espírito Santo com efeito não foi prometido aos sucessores de Pedro
para permitir-lhe publicar, segundo suas revelações, uma nova doutrina
mas para conservar estritamente e expor fielmente, com sua assistência,
as revelações transmitidas pelos Apóstolos, isto é, o depósito da fé.”
A
autoridade delegada por Nosso Senhor ao papa, aos bispos e ao
sacerdócio em geral está ao serviço da fé. Servir-se do direito, das
instituições, da autoridade para aniquilar a fé católica e não mais
comunicar a vida, é praticar o aborto ou a contraconcepção espirituais. É
por isso que estamos submissos e prontos a aceitar tudo o que é
conforme à nossa fé católica, tal como foi ensinada durante dois mil
anos, mas recusamos tudo o que lhe é contrário.
Pois
enfim, um problema grave se colocou à consciência e à fé de todos os
católicos durante o pontificado de Paulo VI. Como é que um papa,
verdadeiro sucessor de Pedro, assegurado pela assistência do Espírito
Santo, pôde presidir à mais profunda e mais ampla destruição da Igreja
na sua história num espaço de tão pouco tempo, coisa que nenhum
heresiarca jamais conseguiu fazer? A esta pergunta será bem preciso
responder um dia.
Na
primeira metade do século V, são Vicente de Lerins, que foi soldado
antes de se consagrar a Deus e declara ter sido “agitado muito tempo
sobre o mar do mundo antes de se recolher ao porto da fé”, falava assim
do desenvolvimento do dogma: “Não haveria nenhum progresso da religião
na Igreja de Cristo? Havê-los-á certamente e muito importantes, de tal
maneira que seja um progresso da fé e não uma mudança. Importa que
cresçam abundante e intensamente em todos e em cada um, nos indivíduos
como nas Igrejas, no decurso das épocas, a inteligência, a ciência, a
sabedoria, contanto que seja na identidade do dogma, dum mesmo
pensamento”. Vicente conhecia o impacto das heresias e deu uma regra de
conduta ainda sempre boa após mil e quinhentos anos: “Que fará então o
cristão católico se alguma parcela da Igreja acaba por desligar-se da
comunhão, da fé universal? Que outro partido tomar senão preferir ao
membro grangrenado e corrompido o corpo em seu conjunto que é são? E se
algum contágio novo se esforça por envenenar, não mais uma pequena parte
da Igreja, mas a Igreja inteira duma só vez, então seu grande cuidado
será apegar-se à antigüidade, que evidentemente não pode mais ser
seduzida por nenhuma novidade perigosa.”
Nas
ladainhas das Rogações, a Igreja nos faz dizer: “Nós vos suplicamos,
Senhor, manter na vossa santa religião o Soberano Pontífice e todas as
ordens da hierarquia eclesiástica”. Isto quer bem dizer que uma tal
desgraça pode suceder.
Na
Igreja não há nenhum direito, nenhuma jurisdição que possa impor a um
cristão uma diminuição de sua fé. Todo o fiel pode e deve resistir,
apoiado no catecismo de sua infância, a quem quer que atentar contra a
sua fé. Se ele se encontra em presença duma ordem que a põe em perigo de
corrupção, a desobediência é um dever imperioso.
É
porque julgamos que nossa fé está em perigo pelas reformas e as
orientações pós-conciliares, que temos o dever de desobedecer e de
conservar a tradição. Acrescentemos o seguinte: é o maior serviço que
podemos prestar à Igreja e ao sucessor de Pedro recusar a Igreja
reformada e liberal. Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, não é nem
liberal nem reformável.
Eu
ouvi por duas vezes enviados da Santa Sé me dizerem: ”O reinado social
de Nosso Senhor não é mais possível em nosso tempo, é preciso aceitar
definitivamente o pluralismo das religiões.” Eis exatamente o que eles
me disseram.
Pois
bem, eu não sou desta religião. Não aceito esta nova religião. É uma
religião liberal, modernista, que tem seu culto, seus sacerdotes, sua
fé, seus catecismos, sua Bíblia ecumênica traduzida em comum por
católicos, judeus, protestantes, anglicanos, jogando com pau de dois
bicos, dando satisfação a todo o mundo, sacrificando muito
freqüentemente a interpretação do magistério. Nós não aceitamos esta
Bíblia ecumênica. Há a Bíblia de Deus, é Sua Palavra a qual não temos o
direito de misturar com a palavra dos homens.
Quando
eu era criança, a Igreja tinha por toda parte, a mesma fé, os mesmos
sacramentos, o mesmo sacrifício da missa. Se me houvessem dito então que
isto mudaria, eu não teria podido acreditar. Em toda a extensão da
cristiandade se rezava a Deus da mesma maneira. A nova religião liberal e
modernista semeou a divisão.
Cristãos
estão divididos no seio duma mesma família devido a esta confusão que
foi instaurada, não vão mais à mesma missa, não lêem mais os mesmos
livros. Sacerdotes não sabem mais o que fazer: ou obedecem cegamente ao
que seus superiores lhes impõem e perdem de alguma sorte a fé de sua
infância e de sua juventude, renunciam às promessas que fizeram no
momento de sua ordenação, prestando o juramento antimodernista; ou
resistem, mas é com a impressão de se separar do papa, do vigário de
Cristo. Nos dois casos, que dilaceração! Muitos sacerdotes morreram
prematuramente de desgosto.
Quantos
outros foram obrigados a abandonar suas paróquias nas quais, há anos,
eles exerciam seu ministério, expostos à perseguição aberta de sua
hierarquia e apesar do apoio dos fiéis aos quais se arrancava o seu
pastor.
Tenho
debaixo dos olhos as despedidas comoventes de um deles à população das
duas paróquias das quais era vigário: “Na sua conversa de... o senhor
bispo me dirigiu um ultimatum: aceitar ou recusar a nova religião; eu
não me poderia esquivar. Então para continuar fiel ao compromisso de meu
sacerdócio, para continuar fiel à Igreja eterna... fui constrangido e
forçado, contra a minha vontade, a retirar-me... A simples honestidade e
sobretudo minha honra sacerdotal me criam uma obrigação de ser leal,
precisamente nesta matéria de gravidade divina (a missa)... É esta prova
de fidelidade e de amor que devo dar a Deus e aos homens, a vós em
particular e é a respeito dela que eu serei julgado no último dia, como,
aliás, todos aqueles a quem foi confiado este mesmo depósito”.
Na
diocese de Campos, no Brasil, a quase totalidade do clero foi expulsa
das igrejas após a saída de Dom Castro Mayer, por não querer abandonar a
missa de sempre, tal como a celebravam ainda até uma data recente.
A
divisão afeta as mínimas manifestações de piedade. Em Val-de-Marne, o
bispado fez expulsar pela polícia vinte e cinco católicos que recitavam o
rosário numa igreja particular de vigário titular há muitos anos. Na
diocese de Metz, o bispo fez intervir o prefeito comunista para que
fosse suspenso o empréstimo de um local concedido a um grupo de
tradicionalistas. No Canadá seis fiéis foram condenados pelo tribunal,
que a lei deste país permite ter competência nesta espécie de questão,
por se haverem obstinado a comungar de joelhos. O bispo de Antigonish os
havia acusado de “perturbar voluntariamente a ordem e a dignidade dum
serviço religioso”. Os “perturbadores” foram postos pelo juiz em
liberdade sob vigilância durante seis meses! Ao mesmo tempo o bispo
proíbe aos cristãos de dobrarem o joelho diante de Deus! No ano passado,
a peregrinação dos jovens a Chartres terminou com uma missa nos jardins
da catedral, estando esta interditada à missa de são Pio V. Quinze dias
mais tarde, as portas estavam abertas de par a par para um concerto
espiritual no decorrer do qual foram interpretadas danças por uma antiga
carmelita.
Duas
religiões se afrontam; nós nos encontramos numa situação dramática, não
é possível deixar de fazer uma escolha, mas esta escolha não é entre a
obediência e a desobediência. O que se nos propõe, aquilo a que se nos
convida expressamente, porquê nos perseguem, é escolher um simulacro de
obediência. O Santo Padre, com efeito, não nos pode pedir que
abandonemos nossa fé.
Nós
escolhemos então conservá-la e não podemos enganar-nos atendo-nos
àquilo que a Igreja ensinou durante dois mil anos. A crise é profunda,
sabiamente organizada e dirigida, por sinal que se pode verdadeiramente
crer que o chefe do empreendimento não é um homem, mas o próprio Satã.
Ora é um golpe magistral de Satã ter chegado a fazer os católicos
desobedecerem a toda a tradição em nome da obediência. Um exemplo típico
é fornecido pelo aggiornamento das
sociedades religiosas: por obediência se faz os religiosos e religiosas
desobedecerem às leis e constituições de seus fundadores as quais eles
juraram observar quando fizeram sua profissão. A obediência, neste caso,
deveria ser uma recusa categórica. A autoridade, mesmo legítima, não
pode ordenar um ato repreensível, mau. Ninguém pode obrigar qualquer
pessoa a transformar seus votos monásticos em simples promessas.
Igualmente ninguém pode fazer que nos tornemos protestantes ou
modernistas.
Santo Tomás de Aquino a quem se é preciso sempre referir, chega mesmo a perguntar-se na Suma Teológica se
a “correção fraterna” prescrita por Nosso Senhor pode-se exercer em
relação aos superiores. Após ter feito todas as distinções úteis ele
responde: “Pode-se exercer em relação aos superiores quando se trata da
fé.”
Se
nos mantivéssemos mais firmes neste capítulo evitaríamos vir a
assimilar bem lentamente as heresias. No começo do século XVI, os
ingleses conheceram uma aventura do gênero daquela que nós vivemos, com
esta diferença, que ela começou por um cisma. Quanto ao resto, as
semelhanças são espantosas e próprias a fazer-nos refletir. A nova
religião, que tomará o nome de anglicanismo começa pela ofensiva contra a
missa, a confissão pessoal, o celibato eclesiástico. Henrique VIII, se
bem que assumiu a enorme responsabilidade de separar seu povo de Roma,
recusa as sugestões que lhe são feitas, mas, no ano seguinte ao da sua
morte, uma ordenação autoriza o uso do inglês na celebração da missa. As
procissões são interditadas, um novo ordo é imposto, o Order of Communion, no
qual o ofertório não existe mais. Para tranqüilizar os cristãos uma
outra ordenação proíbe toda a sorte de mudanças, enquanto que uma
terceira permite aos vigários suprimir as estátuas dos santos e da
Santíssima Virgem nas igrejas. Obras de arte veneráveis são vendidas a
comerciantes, tudo como hoje nos antiquários e bricabraques.
Alguns bispos apenas fizeram notar que o Order of Communion causava
dano ao dogma da presença real, dizendo que Nosso Senhor nos dá seu
corpo e seu sangue espiritualmente. O Confiteor traduzido em língua
vernácula era recitado ao mesmo tempo pelo celebrante e pelos fiéis, ele
servia de absolvição. A missa era transformada em refeição “turning into a Communion”. Mas
mesmo os bispos lúcidos aceitavam finalmente o novo livro para manter a
paz e a união. É exatamente pelas mesmas razões que a Igreja
pós-conciliar queria impor-nos o novo ordo. Os bispos ingleses
afirmaram, no século XVI, que a missa era um “memorial”! Uma farta
propaganda fez passar as maneiras de ver luteranas para o espírito dos
fiéis; os pregadores deviam ser aprovados pelo governo.
Durante
o mesmo tempo, o papa não é mais chamado senão o “bispo de Roma”, ele
não é mais o pai e sim o irmão dos outros bispos e no caso presente, o
irmão do rei da Inglaterra que se instituiu chefe da Igreja nacional. O Prayer Book de
Crammer foi composto misturando-se partes da liturgia grega com a
liturgia de Lutero. Como não pensar em Mons. Bugnini redigindo a missa
dita de Paulo VI com a colaboração de seus “observadores” protestantes
adidos qualificados ao Conselho para a reforma da liturgia? O Prayer Book começa por estas palavras: “A Ceia e Santa Comunhão comumente chamada missa...” prefiguração do famoso artigo 7 da Institutio Generalis do Novo Missal, retomado
pelo Congresso Eucarístico de Lourdes em 1981: “A Ceia do Senhor,
chamada de outra maneira a missa...” A destruição do sagrado da qual eu
falava mais acima, estavam incluídas também na reforma anglicana: as
palavras do Canon deviam obrigatoriamente ser ditas em voz alta, assim
como acontece nas “Eucaristias” atuais.
O Prayer Book foi
também aprovado pelos bispos “para conservar a unidade interior do
reino”. Os sacerdotes que continuavam a dizer “a missa antiga” incorriam
em penas que iam da perda de seus proventos à exoneração pura e
simples, em caso de reincidência, e à prisão perpétua. É preciso
reconhecer que em nossos dias não se põem mais na prisão os sacerdotes
“tradicionalistas”.
A
Inglaterra dos Túdores descambou para a heresia sem bem se dar conta,
aceitando a mudança sob pretexto de adaptar-se às circunstâncias
históricas do tempo, tendo à frente seus pastores. É hoje toda a
cristiandade que corre o risco de tomar o mesmo caminho e vós pensastes
que se nós, que temos uma certa idade, corremos um perigo menor, as
crianças, os jovens seminaristas formados nos novos catecismos, na
psicologia experimental, na sociologia, sem nenhuma tintura de teologia
dogmática e moral, de direito canônico, de história da Igreja, são
educados numa fé que não é a verdadeira, encontram normais as noções
neo-protestantes que se lhes inculcam? Que será da religião de amanhã se
nós não resistimos?
Vós
tereis a tentação de dizer: “Mas que podemos fazer? É um bispo que diz
isto ou aquilo. Vede, este documento vem da comissão da catequese, ou
duma outra comissão oficial.”
Portanto,
nada mais vos resta senão perder a fé. Mas não tendes o direito de
reagir assim. São Paulo nos advertiu: “Se mesmo um anjo viesse do céu
dizer-vos outra coisa do que vos ensinei, não o escuteis.”
Tal é o segredo da verdadeira obediência.
Dom Marcel Lefebvre
Dom Marcel Lefebvre