A liberdade religiosa
No
concílio, foi o esquema sobre a liberdade religiosa que suscitou as
mais acirradas discussões. Isto se explica facilmente pela influência
que exerciam os liberais e pelo interesse que tinham nesta questão os
inimigos hereditários da Igreja. Passaram-se vinte anos e é possível ver
agora que nossos receios não eram exagerados quando este texto foi
promulgado, sob a forma duma declaração que reunia noções opostas à
Tradição e ao ensinamento de todos os últimos papas. Tanto isto é
verdadeiro que princípios falsos ou expressos dum modo ambíguo têm
infalivelmente aplicações práticas reveladoras do erro cometido em
adotá-los. Vou
mostrar, por exemplo, como os ataques dirigidos contra o ensino
católico na França pelo governo socialista são a conseqüência lógica da
nova definição dada à liberdade religiosa pelo Vaticano II.
Façamos
um pouco de teologia para compreender bem com que espírito esta
declaração foi redigida. A argumentação inicial — e nova — fazia
repousar a liberdade, para cada homem, de praticar interior e
exteriormente a religião de sua escolha, sobre a “dignidade da pessoa
humana”. Era, portanto, esta dignidade que fundamentava a liberdade, que
lhe dava sua razão de ser. O homem podia aderir a qualquer erro em nome
de sua dignidade.
Isto
era pôr o carro à frente dos bois, apresentar as coisas pelo avesso.
Pois aquele que adere ao erro decai de sua dignidade e, ademais, nada se
pode estabelecer sobre o erro. De outra parte, o que fundamenta a
liberdade não é a dignidade, mas a verdade: “A Verdade vos tornará
livres”, disse Nosso Senhor.
Que
se entende por dignidade? O homem a tira, segundo a doutrina católica,
de sua perfeição, isto é do conhecimento da verdade e da aquisição do
bem. O homem é digno de respeito segundo sua intenção de obedecer a Deus
e não segundo seus erros. Estes geram indefectivelmente o pecado.
Quando Eva, a primeira pecadora, sucumbiu, disse: ”A serpente me
enganou.” O seu pecado e o de Adão acarretaram a degradação da dignidade
humana da qual sofremos desde então.
Daí
resulta que não se pode ligar a liberdade à degradação como à sua
causa. Ao contrário, a adesão à verdade e o amor de Deus são os
princípios da autêntica liberdade religiosa. Pode-se definir esta como a
liberdade de render a Deus o culto que lhe é devido e de viver segundo
seus mandamentos.
Se
tendes seguido bem este raciocínio, a liberdade religiosa não se pode
aplicar às religiões falsas, ela não sofre a partilha. Na sociedade
civil, a Igreja proclama que o erro não tem direitos; o Estado somente
deve reconhecer para os cidadãos o direito de praticarem a religião de
Cristo.
Certamente,
isto deve parecer como uma pretensão exorbitante àquele que não tem fé.
O católico não contaminado pelo espírito do tempo julga-o normal e
legítimo. Mas ai! Muitos, entre os cristãos, perderam de vista estas
realidades. Repetiu-se tanto que era preciso respeitar as idéias dos
outros, colocar-se em seu lugar, aceitar seus pontos de vista,
divulgou-se tanto este contra-senso: “A cada um a sua verdade”; tanto se
tomou o diálogo pela virtude cardeal por excelência, diálogo que leva
obrigatoriamente a concessões: o cristão, por uma caridade mal
entendida, acreditou que devia fazê-las mais que seus interlocutores, é
freqüentemente o único a fazê-las. Não se imola mais, como os mártires,
pela verdade; é a verdade que é por ele imolada.
De
outra parte, a multiplicação dos estados leigos na Europa cristã
habituou os espíritos ao laicismo e os conduziu a adaptações contrárias à
doutrina da Igreja. A doutrina não se adapta, ela é fixa, definida uma
vez por todas.
À
comissão central preparatória do concílio, dois esquemas tinham sido
apresentados, um pelo cardeal Bea sob o título “Da liberdade religiosa”,
o outro pelo cardeal Ottaviani, sob o título ”Da tolerância religiosa”.
O
primeiro se estendia por catorze páginas sem nenhuma referência ao
magistério que o precedeu. O segundo compreendia sete páginas de texto e
dezesseis páginas de referências, indo de Pio VI (1790) a João XXIII
(1959).
O
esquema do cardeal Bea continha, no meu parecer e no de um número não
negligenciável de padres, afirmações em desacordo com a verdade da
Igreja eterna. Lia-se nele, por exemplo: “É por isso que se deve louvar o
fato de que, em nossos dias, a liberdade e a igualdade religiosas são
proclamadas por numerosas nações e pela Organização Internacional dos
Direitos do Homem.”
O
Cardeal Ottaviani, por seu turno, expunha muito corretamente a questão:
“Da mesma forma que o poder civil se julga com o direito de proteger os
cidadãos contra as seduções do erro... ele pode mesmo regular e moderar
as manifestações públicas dos outros cultos e defender os seus cidadãos
contra a difusão das falsas doutrinas que, a juízo da Igreja, põem em
perigo sua salvação eterna.”
Leão
XIII dizia (Rerum novarum) que o bem comum temporal, fim da sociedade
civil, não é puramente de ordem material, mas “principalmente um bem
moral”. Os homens se organizaram em sociedade em vista do bem de todos;
como se poderia excluir o bem supremo, que é a bem-aventurança celeste?
Há
um outro aspecto das coisas que guia a Igreja quando ela nega o direito
de cidadania às religiões errôneas: os propagadores de idéias falsas
exercem naturalmente uma pressão sobre os mais fracos, os menos
instruídos. Quem contestará que o dever do estado seja o de proteger os
fracos? É seu principal dever, a razão de ser da organização em
sociedade. Ele defende seus indivíduos dos inimigos, no exterior,
protege-os na vida quotidiana contra as agressões de todo o gênero,
contra os ladrões, os assassinos, os vigaristas e mesmo os Estados
leigos asseguram uma proteção em matéria de costumes, proibindo, por
exemplo, a afixação de jornais pornográficos, se bem que a situação se
tenha degradado bastante na França neste últimos anos e que ela seja dos
piores países como a Dinamarca. Mas enfim, por longo tempo os países de
civilização cristã conservaram o senso de suas obrigações em relação
aos mais vulneráveis e em particular às crianças! O povo permaneceu
sensível a isso e pede ao Estado, por intermédio de suas associações
familiares, que tome as medidas necessárias.
Proibir-se-ão
emissões de rádio em que o vício é muito ostensivamente apresentado,
embora ninguém esteja obrigado a escutá-las, mas porque as crianças
dispõem freqüentemente de transistores e por conseguinte não estão mais
protegidas. A doutrina da Igreja, que pode parecer excessivamente
severa, é acessível ao raciocínio corrente e ao bom senso.
É
de regra atualmente rejeitar toda forma de repressão e deplorar que ela
se tenha exercido em certos momentos da história. SS. João Paulo II,
cedendo a esta moda, condenou a Inquisição por ocasião de sua viagem à
Espanha. Mas da Inquisição não se quer reter senão os exageros,
esquecendo que a Igreja, criando o Santo Ofício, cujo título exato é
“Sanctum Officium Inquisitonis”, preenchia sua função de defesa das
almas e perseguia aqueles que tentavam falsificar a fé e punham assim em
perigo uma população inteira no que concernia à sua eterna salvação. A
Inquisição vinha em socorro dos próprios hereges, como se vai em socorro
de pessoas que se lançam ao mar para acabar com a vida; acusar-se-iam
os salvadores de exercer uma repressão intolerável para com esses
infelizes? Para usar duma outra comparação, eu não penso que ocorra à
mente de um católico, mesmo perplexo, censurar um governo por interdizer
a droga, sob o pretexto de que ele exerce deste modo uma repressão
sobre os drogados.
Pode-se
compreender que um pai de família imponha a fé a seus filhos. Nos Atos
dos Apóstolos, o centurião Cornélio, tocado pela graça, recebe o batismo
“com todos os de sua casa”. Igualmente Clóvis se fez batizar com os
seus soldados.
Os
benefícios que traz a religião católica mostra o caráter ilusório de
preconceitos dos clérigos pós-conciliares de abster-se de toda a
pressão, e mesmo de toda a influência em relação aos “não crentes”. Na
África, onde passei a maior parte de minha vida, as missões combateram
os flagelos que são a poligamia, a homossexualidade, o desprezo com que é
considerada a mulher. Esta, cuja situação degradante se sabe qual é na
sociedade islâmica, se torna uma escrava ou um objeto, desde que a
civilização cristã desaparece. Não se pode duvidar do direito da verdade
se impor e substituir as religiões falsas. E não obstante a Igreja não
preconiza na prática uma intransigência cega em relação ao culto público
delas. Ela professou sempre que este podia ser tolerado pelos poderes
públicos em vista a evitar um mal maior. É por isso que o cardeal
Ottaviani preferia o termo “tolerância religiosa”.
Se
nós nos colocamos no caso de um Estado católico, onde a religião de
Cristo é reconhecida oficialmente, esta tolerância evita perturbações
que seriam prejudiciais ao conjunto. Numa sociedade laica que professa a
neutralidade, a lei da igreja, seguramente, não será observada. Então,
direis, de que serve mantê-la?
É
que em primeiro lugar não se trata duma lei humana que se pode ab-rogar
ou modificar. Depois o próprio abandono do princípio tem graves
conseqüências; nós já temos registrado várias.
Os
acordos entre o Vaticano e certas nações que atribuíam muito justamente
um estatuto preferencial à religião católica foram revistos. É o caso
da Espanha e há pouco tempo o da Itália, onde o catecismo não é mais
obrigatório nas escolas. Até onde se irá? Os novos legisladores da
natureza humana pensaram que o papa é também um chefe de Estado? Seria
ele levado a laicizar o Vaticano, a autorizar a construção ali dum
templo ou duma mesquita?
É
também o desaparecimento dos Estados católicos. No mundo atual, há
estados protestantes, um estado anglicano, estados muçulmanos, estados
marxistas e não se quer mais que haja estados católicos! Os católicos
não teriam mais o dever de trabalhar em estabelecê-los, mas o dever de
manter o indiferentismo religioso do Estado!
Pio
IX chamou a isso “delírio” e “uma liberdade de perdição”. Leão XIII
condenou o indiferentismo do Estado em matéria religiosa. O que era bom
no seu tempo então não é mais verdadeiro?
Não
se pode afirmar a liberdade de todas as comunidades religiosas na
sociedade humana sem conceder igualmente a liberdade moral a estas
comunidades. O Islão admite a poligamia, os protestantes têm, segundo as
Igrejas, posições mais ou menos laxistas sobre a indissolubilidade dos
vínculos conjugais e sobre a contracepção... O critério do bem e do mal
desaparece. Na Europa, o aborto não é proibido pela lei a não ser na
Irlanda católica. Não é possível que a Igreja de Deus acoberte de certa
maneira estes excessos afirmando a liberdade religiosa.
Outra
conseqüência: as escolas livres. O Estado não pode mais compreender que
existam escolas católicas e que elas se atribuam a parte do leão no
setor do ensino particular. Ele as coloca no mesmo plano, como se viu
recentemente, que as escolas fundadas pelas seitas e diz: ”Se nós vos
permitirmos existir, devemos fazer o mesmo para Moon e por qualquer
outra comunidade deste gênero, que têm uma reputação tão má.” E a Igreja
não possui mais argumentos! O governo socialista tirou muito bem
partido da declaração sobre a liberdade religiosa. Conforme o mesmo
princípio imaginou-se fazer uma fusão das escolas católicas com as
outras, contanto que estas observem o direito natural! Ou então as
abriram às crianças de qualquer religião, lisonjeando-se algumas de ter
mais crianças muçulmanas que cristãs.
É
assim que a Igreja, aceitando um estatuto de direito comum nas
sociedades civis, corre o risco de tornar-se uma seita entre as outras.
Ela se coloca na conjuntura de desaparecer, pois é evidente que a
verdade não pode ceder seus direitos ao erro sem se renegar.
As
escolas livres adotaram na França para se manifestarem nas ruas um hino
muito belo mas cujas palavras traem o contágio deste espírito
detestável: “Liberdade, tu és a única verdade.” A liberdade, considerada
como um bem absoluto, é quimérica. Aplicada à ordem religiosa, conduz
ao relativismo doutrinal e à indiferença prática. Os católicos perplexos
devem agarrar-se à palavra de Cristo que eu citava: “É a verdade que os
libertará”.
Dom Marcel Lefebvre
Dom Marcel Lefebvre